A “criatividade” que está por trás da dieta vegetariana.

Mesmo os mais distraídos notaram o apelo cada vez maior e mais intenso para aderir a uma dieta vegetariana (ou alguma das suas variantes) usando diversos argumentos baseados em ciência, desde a sustentabilidade ao incrível benefício que dizem ter para a nossa saúde, performance e longevidade.

Tudo o que possa ter esse impacto atrai a minha atenção: não só procuro sempre melhorar a minha própria performance como construir os planos e protocolos mais correctos e eficazes a quem nos procura para ser mais saudáveis. Sempre que alguma estratégia clama poder fazê-lo, tento saber mais e qual a ciência que o suporta.

Em particular em relação à dieta vegetariana, houve três motivos para o fazer de forma mais elaborada:

  1. No que toca à composição por macro-nutrientes, a dieta vegetariana é diametralmente oposta à que me fez perder os meus mais de 50kg: é composta maioritariamente por hidratos de carbono enquanto que o plano mais adequado para vencer a obesidade é uma estratégia low-carb.

  2. Durante as minhas consultas, comecei a reparar que uma percentagem significativa de vegetarianos / vegan sentiam uma melhoria inicial significativa da sua energia e vitalidade mas, passadas algumas semanas, sentiam novamente uma quebra - aliado a uma alteração do funcionamento intestinal.

  3. Referências mundiais na área da longevidade, performance e saúde, como Dr Peter Attia, Dr Tim Noakes e Ben Greenfield defendem outras estratégias nutricionais para quem quer viver mais e melhor, levando à minha primeira conclusão: não é definitivamente consensual que seja a melhor opção. Estes são indivíduos que passam a vida a avaliar a ciência publicada, tem mesmo equipas de investigadores nessa tarefa. Inclusivamente é conhecida a mudança pública de opinião do Dr Tim Noakes em relação aos hidratos de carbono e gordura.


Queria "ver por mim" - ler e interpretar - os argumentos apresentados e decidi ler um dos livros mais proclamados neste tópico: "Como Não Morrer" do Dr Michael Greger. Podia ter lido um dos muitos artigos disponíveis online? Podia. Mas não era a mesma coisa. Não queria ler a opinião filtrada de alguém, queria formar a minha e chegar às minhas conclusões.

O livro em si é um compêndio com mais de 600 páginas, das quais mais de 150 são das inúmeras referências usadas ao longo de todo o texto. Aliás, este é um dos sues méritos: é quase impossível encontrar um parágrafo que não contenha qualquer referência científica, tornando o trabalho de detective mais moroso mas enriquecedor e divertido.

Por outro lado, torna-se muito mais fácil encontrar surpresas e, digamos, soluções criativas...

Devo dizer que, à data em que escrevo este artigo, não fiz o fact-checking ao livro todo, tendo-me focado nas áreas cardiovasculares e de controlo de peso. Talvez as minhas conclusões sejam diferentes quando ler o livro todo e, se isso acontecer, como acreditar que irei partilhá-las!

Feita esta ressalva, deixe-me dizer-lhe que é preciso querer mesmo mostrar que a dieta vegetariana é a melhor opção para se dizer que há evidência irrefutável a demonstrá-lo, como é dito logo no prefácio do livro. Só mesmo uma vontade mesmo muito grande poderá fazer alguém dizê-lo, já que é absolutamente errado.

Encontro três problemas essenciais nos estudos que o Dr Greger refere no livro ou no modo como retrata a evidência:

1) Healthy User Bias

A vastíssima maioria dos estudos-chave descritos no livro sofrem do chamado healthy user bias. Este viés pretende descrever o facto de quem segue a dieta vegetariana terá, quase de certeza, um maior cuidado com a sua saúde. A sua escolha alimentar significará que deve ter uma maior vontade de ser saudável e querer seguir as indicações dadas pelo seu médico (tendo em consideração as indicações existentes desde os anos 70, que nasceram de forma "estranha". Leia este meu outro artigo para conhecer a origem da pirâmide dos alimentos).

Pelas mesmas razões, esta pessoa deverá também ter um estilo de vida mais saudável, em particular ser menos sedentário, fazer mais exercício, beber menos álcool e fumar menos. Deverá também escolher alimentos de melhor valor nutricionais, optando por produtos biológicos. Para além disso, é costume que também tenham um maior cuidado com a gestão de stress (com práticas frequentes de meditação e yoga) e pertencem a uma comunidade.

O mesmo raciocínio faz-se ao contrário também: no geral, pessoas não-vegetarianas terão mais tendência para se alimentarem com menor cuidado, fumar mais, beber mais álcool e ser mais sedentários.

Todos estes factores aumentam o risco de doença crónica e têm um grande impacto na sua saúde. 

Estudos que comparem "vegetarianos" com "não-vegetarianos" e não tenham em consideração este viés não podem ser usados como argumentos a favor (ou em detrimento, já que a falha do argumento é a mesma) da dieta vegetariana porque não é possível isolar esse efeito.

Exemplos são os estudos nos quais se comparam "não-vegetarianos" com elementos pertencentes à Igreja dos Adventistas do Sétima Dia. É uma população muito usada porque estão proibido comer produtos de origem animal, em particular carne. Ao longo do livro são usados esses estudos para dizer "Estão a ver o efeito que não comer carne tem na saúde? Basta olhar para estas pessoas!".

Acontece que também estão proibidos de fumar ou beber álcool, é fomentado o exercício físico e há uma sensação de pertença a uma comunidade muito grande (talvez por disso, apresentam níveis de stress mais baixos), algo que o grupo "não-vegetariano" não deverá fazer. Qualquer um destes hábitos estão associados a um maior nível de saúde, não sendo possível atribuir a um ou outro.

Apesar da vontade do Dr Greger, estudos observacionais que não acautelam o efeito do healthy user bias não podem ser considerados como cientificamente defensores da dieta vegetariana.

2) Comparações impossíveis

Ao contrário de muitas outras áreas clínicas, a investigação no campo de nutrição é extremamente complexa porque é muito difícil controlar o que um indivíduo come 24h por dia durante o período em que decorre o estudo - semanas, meses ou mesmo anos. A vasta maioria usa "questionários de frequência alimentar" nos quais se regista a frequência (ou mesmo a quantidade) com que determinados alimentos listados foram consumidos.

Este método não só é pouco fiável porque depende de os participantes conseguirem descrever com exatidão o que comeram e é influenciado pelo modo como os alimentos são caracterizados e listados. Na determinação das categorias é possível dar aso a muita criatividade, ferindo muito a fiabilidade dos estudos usados pelo Dr Greger.

Deixe-me colocar-lhe esta questão:

Acha que é justo incluir na mesma categoria "vegetais" brócolos e batatas fritas numa cadeira de fast-food? Ou dentro da categoria "cereais" trigo integral de produção biológica ou farinha de trigo pré-empacotada? Presumo que ache que não porque o valor nutricional e o impacto que têm na saúde não é comparável. A maioria dos investigadores concorda connosco e são muito cuidadosos: incluem brócolos na categoria "vegetais" e o trigo integral em "cereais" mas incluem a farinha de trigo e as batatas fritas em "alimentos processados". Até aqui tudo bem.

Agora, considera que ovos, peixe e carne são iguais? Ou até que a carne servida numa cadeia de hambúrgueres é semelhante a um bife de uma vaca alimentada a erva? Pois, eu também não acho que são iguais. Sabe quem não concorda connosco? Quem planeia os estudos! Na vastíssima maioria dos casos, é integrado na categoria "carne" tudo o que seja produto animal, desde peixe, ovos, produtos lácteos ou carne, incluindo carne altamente processada. Parece-lhe cientificamente justo?

Isolar os elementos saudáveis da categoria "vegetais" e "cereais" e não fazer o mesmo com a "carne" torna qualquer comparação errada e até impossível de ser feita.

3) Extrapolação de resultados

Existem poucos estudos de intervenção na área da nutrição dada a dificuldade técnica de controlar o que os participantes comem. Assim, sempre que algum surge, é alvo de muita atenção.

Foi o que aconteceu quando Dr Dean Ornish publicou artigos dizendo que tinha conseguido reverter doença coronária nos participantes dos estudos realizados na sua clínica. Independentemente de haver quem argumente que o método usado para avaliar a dimensão da doença não é conclusivo, o que é certo é que há demonstração científica publicada que o seu protocolo terapêutico conseguiu esse impacto maravilhoso. De louvar, sem dúvida.

O sucesso do Dr Ornish foi rapidamente usado como argumento "irrefutável" para mostrar que uma dieta vegan com níveis extremamente baixos de gordura eram a chave para o drama das doenças coronárias. E estaria tudo bem se a única intervenção realizada tivesse sido a estratégia alimentar. Mas há sempre um "mas"!...

E este "mas" é que, para além da intervenção alimentar, os participantes foram sujeitos a um plano terapêutico intensivo que incluía também evicção total de tabaco e álcool, prática diária de exercício e mindfulness para gestão do stress e promoção da sensação de pertença a uma comunidade.

Se é possível dizer que o Dr Ornish consegue reverter a doença coronária, não é possível isolar qualquer um destes factores, seja a alimentação, o exercício ou mindfulness (cada um deles com benefícios largamente publicados). É tão verdade dizer que é a dieta vegan low-fat a responsável pelos resultados como deixar de fumar. Deixo a provocação: qual lhe parece mais provável?

Ora, quer isto dizer que as pessoas que adoptam uma dieta vegetariana e se sentem muito melhores, mais fortes e mais saudáveis estão a imaginar ou estão enganados? Claro que não! Não me surpreende de todo que isso aconteça. Aliás, diria que é muito provável que tal aconteça!

A razão é simples:

O benefício não está no que passaram a comer, mas sim em terem deixado de comer o que comiam!

Qual lhe parece mais saudável, um bife frito com batatas fritas e ovo estrelado, tudo cozinhado com óleo vegetal de qualidade duvidosa, ou uma salada com diferentes legumes de diferentes cores, regada com azeite? Certamente a segunda opção. Fazendo essa substituição e passando a sentir-se melhor, com mais energia e mais saudável, será possível atribuir esse efeito à salada ou a ter deixado de comer "mal"?

Quem substitui uma dieta dita “ocidental”, ou de uma forma ou outra a dieta habitual dos nossos dias, vai automaticamente reduzir de forma significativa a quantidade de alimentos refinados, de carne processada de péssima qualidade ou de fast-food e vai aumentar o consumo de vegetais e frutas, que se traduzirá automaticamente em benefícios nutricionais e metabólicos.

Mesmo apenas a troca da carne processada por carne de erva já terá esse impacto! Para além disso, juntamente com essa mudança irá provavelmente adoptar outros hábitos saudáveis como aumentar o exercício físico ou reduzir a quantidade de álcool (é difícil melhorar uma área das nossas vidas, deixando as outras iguais), contribuindo para a melhoria global da saúde e bem-estar.

Este argumento aplica-se a qualquer pessoa em qualquer contexto, incluindo os super atletas que aparecem no documentário Game Changers. A pergunta que se impõe é a mesma: o impacto que sentiram na performance deveu-se à nova alimentação ou a terem deixado a antiga? É uma resposta que fica sem resposta em todo o documentário - e nos debates em que se discute a dieta vegetariana.

Espero ter ajudado a trazer alguma luz a esta discussão e que se sinta mais informado e pronto a tomar melhores decisões.


E. info@cristinasales.pt

T. (+351) 911 082 191

 
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